A coerência também é uma via de mão dupla?

Camarada Janderson*


No final de 2022 foi lançada a Plataforma Mundial Anti-imperialista (PMAI). A PMAI reúne cerca de 34* organizações de esquerda, revolucionárias e não-revolucionárias, incluindo algumas que constroem o Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários (EIPCO). O Partido Comunista Brasileiro (PCB) esteve nos primeiros encontros. Depois de duas idas, o partido suspendeu sua participação na plataforma até que o CC a debatesse em Julho.


Em Junho de 2023, Ivan Pinheiro, através da Revista Ópera, instigou uma onda de desconfiança no interior complexo do PCB apontando um suposto risco na ida reiterada do partido aos encontros da PMAI. Segundo Ivan, a maioria dos partidos que a compõem apoiam a investida da Rússia na guerra na Ucrânia, e por isso, a ida dos comunistas aos encontros provocaria a divisão do Movimento Comunista Internacional (MCI), uma vez que já existe uma plataforma que reúne partidos revolucionários - o EIPCO. Ivan diz, também, que a maioria dos partidos que participaram da PMAI não constroem o EIPCO.[1] Além da questão política, Ivan criticou o caráter restrito da decisão do PCB de ir à PMAI.


Mas em Agosto de 2019, Ivan Pinheiro, até então membro do CC do PCB, em entrevista ao portal PCB/SC, disse o seguinte sobre o papel de China e Rússia no cenário geopolítico:


"... considero que seu aspecto positivo é que o imperialismo estadunidense não pode mais tomar medidas unilaterais. (...) É inegável que a ação da Rússia e da China, cada qual à sua maneira, tem sido fundamental para confrontar e, em alguns casos, conter o ímpeto do imperialismo estadunidense (...) Devemos saudar este fato, mas sem ilusões, pois o motor desta ação são os interesses econômicos e geopolíticos destas duas grandes potências, também imperialistas, e não o exercício do internacionalismo proletário! Nesse contexto, cabe aos comunistas saber aproveitar as contradições interimperialistas para avançar o processo revolucionário em cada país." [2]


Até então, desde 2010 o PCB considerava que na esfera internacional a Rússia oscilava "entre um padrão de independência e de reafirmação como potência e um alinhamento com as potências capitalistas". [3]


Os trechos acima servem para demonstrar que Ivan Pinheiro, em 2019, já sabia o papel que Rússia e China representam no cenário das disputas interimperialistas. A ofensiva da Rússia contra a Ucrânia, por exemplo, já acontecia desde 2013. Apesar do PCB não ter definido nenhum "apoio crítico" ao projeto político do governo russo e do evidente caráter interimperialista da disputa, Ivan Pinheiro achava positivo seu papel no "confronto ao ímpeto do imperialismo estadunidense".  


Do ponto de vista político, o gesto da maioria da PMAI ao apoiar pragmaticamente a Rússia têm o mesmo caráter do gesto de Ivan em 2019. Ainda que considerasse a Rússia um país imperialista e apesar das ponderações sobre "não ter ilusões", Ivan achava positivo seu papel no xadrez do capitalismo global, e esse foi o ponto central de sua resposta ao entrevistador. Disse ainda que "cabe aos comunistas saber aproveitar as contradições interimperialistas para avançar o processo revolucionário de cada país". Ora! O que aconteceu para que, em quatro anos, Ivan Pinheiro deixasse de ver os acenos à Rússia como um gesto pragmático e aproveitável e passasse a vê-lo como sinal de degeneração político-partidária? Por que quatro anos depois tal gesto justificaria um congresso extraordinário no PCB? Quem, em quatro anos, foi capaz de convencer com tanta solidez esse experiente militante brasileiro de que não é mais aproveitável apoiar Rússia e China em seu conflito contra as forças da OTAN? 


Não quero aqui, camaradas, defender Rússia e China em quaisquer situação. Também não pretendo polemizar especificamente as posições do KKE. Trata-se aqui de uma simples provocação[4]. A contradição é real. Ivan agiu seletivamente. O desdobramentos de seus questionamentos originou na atual crise do partido. Parafraseando um youtuber famoso, "a troco de quê, camaradas?!"


Ao que me parece, tecer apoio pragmático à Rússia imperialista em 2019 não era um gesto divisionista perante o MCI, não sabotava o centralismo-democrático e nem o marxismo-leninismo. Hoje, já que o protagonista do suposto erro político não foi ele, o fato do partido ter participado (criticamente, inclusive) de uma plataforma que apoia a Rússia na guerra da Ucrânia lhe "preocupa" por supostamente nos afastar do campo revolucionário do Movimento Comunista Internacional. Por que essa mesma preocupação não surgiu enquanto Ivan concedia a entrevista em questão? Antes de 2019 o KKE (seu partido preferido) já entendia a Rússia como parte da "pirâmide imperialista global".[5] Ivan Pinheiro não sabia disso?


E a coerência, camaradas, também é uma via de mão dupla?



* Camarada Janderson é funkeiro comunista; artista e militante da UJC e do PCB em São Paulo.


Referências:

* Uma informação foi corrigida 1h depois do texto. Trata-se da quantidade de partidos participantes. Não foram 25, o número mais adequado seria 34 considerando aquelas que assinaram a declaração de Paris (declaração fundadora da plataforma).

[1] Partidos que participaram da PMAI e também participam do EIPCO: Partido Comunista Italiano, Partido Comunista dos Povos da Espanha, Partido Comunista Peruano, Partido Comunista do Brasil, Partido Comunista da Bolívia, Partido Comunista Libanês, Partido do Povo do Panamá, Partido Comunista da Argentina, Partido Comunista da Bohemia e Moravia, Partido Socialista dos Trabalhadores da Croácia, Partido Comunista da Polônia, Partido Comunista (Itália), Partido Comunista Italiano, Novo Partido Comunista da Iugoslávia, Partido Comunista dos Trabalhadores Russos, Partido dos Trabalhadores Húngaros e Partido Comunista (Suiça).


[2] http://www.banderarojacanarias.org/2019/08/ivan-pinheiro-el-mundo-latinoamerica-y.html?m=1


[3] Balanços e Perspectivas (2010) - PCB


[4] Antes que invalidem minha provocação com base na comparação das trajetórias minha e do Ivan, saibam que eu sou tão intelectual quanto qualquer outro militante branco (desses cosplay de bolchevique) que costumam intervir nas redes sociais com ar de revolucionários experientes. Portanto, espero que não questionem o mérito da minha atitude, pois, se meros marxólogos pequeno-burgueses sem práxis revolucionária alguma se sentem seguros para escrever orelha e prefácio de livro leninista (à exemplo de alguns casos recentes), não será a trajetória de um mero humano mortal que me impedirá de criticá-lo. Não admitirei que normalizadores de pequeno-burgueses "editores" estranhem minha atitude. Se para alguns é normal intelectuais com vida limitada escrever sobre o grande Lênin, deve ser normal, também, um intelectual orgânico como eu poder criticar aquilo que bem entende.

[5] Artigo: The military-political equation in Syria - trechos do artigo publicado no "Kommounistiki Epitheorisi", o jornal político-teórico do CC do KKE, número 1 de 2016) Elisseos Vagenas (Membro do CC do KKE, Responsável pela Secção de Relações Internacionais)

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